Edição 220 - JANEIRO 2012 - FERNANDO BELTRAMI - REVISTA CONTRA-RELÓGIO
Duas coisas são certas quando se termina uma prova: a
sensação de que se poderia ter ido um pouco mais forte e a de que
faltou alguma coisa, geralmente perna ou pulmão. Por isso, é bom conhecer o tema, para encarar melhor essas fraquezas.
Entender nossa performance quando ela
realmente importa é parte fundamental de qualquer ciclo de treinamento.
Saber onde estão os acertos e os erros nos permite repetir os primeiros e
evitar os últimos. Alguns corredores insistem em começar um prova muito
forte, ou muito devagar. Outros não abrem mão de determinado café da
manhã, e sempre acham que a comida fez mal depois da prova.
Neste
processo de aprendizado sobre as respostas do organismo frente às
diferentes provas e treinos, quantas vezes você já disse que "as pernas
estavam bem, o que faltou foi pulmão"? Metade das vezes, eu diria,
porque na outra metade a frase é "o pulmão estava bem, o que faltou foi
perna". Esta sensação de "falta" sempre irá pender para alguma parte do
corpo.
Salvas as vezes em que um
corredor for obrigado a diminuir de ritmo em função de uma dor
inesperada ou algum motivo semelhante, em condições normais a fadiga
sempre irá se manifestar de alguma forma antes que se manifeste de
outra. Como diz o ditado, a corrente sempre quebra no elo mais fraco, e
na corrida não é diferente.
Mas o que
quer dizer, para nosso corpo e para o treinamento, aquela sensação de
"faltou isso ou aquilo"? A nossa percepção muitas vezes nos prega peças;
a dor e o desconforto são sensações, ou seja, são a manifestação
consciente de como o sistema nervoso interpreta uma determinada
situação. O que vamos tentar fazer agora é explicar um pouco melhor o
que estas sensações podem representar, para que o corredor ganhe uma
melhor compreensão de suas fraquezas ao montar sua nova planilha de
treinos.
FALTOU PERNA.
Vamos começar pelo mais difícil, pois esse súbito "desaparecimento" dos
músculos durante uma prova ou treino pode ter várias causas. De
imediato, é importante saber que esta não é a sensação que um corredor
deseja relatar após uma prova, especialmente se as pernas tiverem lhe
abandonado no meio do percurso, e não somente nos últimos metros.
Uma
possibilidade para o que vamos chamar de "falta de pernas" é a depleção
dos estoques de carboidrato do organismo. Durante a corrida, nossos
músculos usam glicose (que é um açúcar ou carboidrato) de diversas
fontes: dos estoques intra-musculares, onde a glicose estocada e
"empacotada" é chamada de glicogênio; dos estoques de glicogênio do
fígado e finalmente das fontes externas, dos alimentos e bebidas ricos
em carboidratos que são ingeridos durante a atividade.
Se
a alimentação do corredor estiver em dia, e se ele não tiver realizado
uma série extremamente extenuante no dia anterior sem a devida reposição
da energia perdida, uma baixa nos estoques de carboidratos não é uma
ameaça em eventos que durem até cerca de uma hora e meia, pois este é
período médio de duração de nossos estoques de glicogênio. Claro, é
possível correr por muito mais de uma e meia sem parar e sem se
alimentar; então do que é que estamos falando?
A
resposta é que, se tentarmos gastar nossos estoques o mais rapidamente
possível, isso irá levar cerca de uma hora e meia. É possível levar mais
tempo do que isso, mas a atividade terá que ter sua intensidade
reduzida a fim de que se utilizem mais gorduras e menos carboidratos no
processo de produção de energia. Eventos mais longos, de meia-maratona
para cima, podem sim ser completados sem nenhum tipo de reposição de
glicose, porém o ritmo de prova será afetado, o que ninguém deseja. A
maioria dos corredores tem muito a se beneficiar da ingestão de
carboidratos, sejam eles em líquido, gel ou alimentos sólidos, na forma
de diversos minutos menos em seu tempo final.
Como
nosso cérebro utiliza exclusivamente carboidratos para funcionar, nosso
organismo defende com força nossas reservas de açúcar. Quando começamos
a correr, nosso cérebro calcula quanto açúcar temos disponível e quanto
iremos gastar. Se a conta não fechar, se nosso cérebro achar que iremos
gastar, no ritmo atual, mais açúcar do que temos disponível, nossa
percepção de esforço se eleva ao ponto em que um ritmo de corrida que
era considerado confortável se torna insustentável.
O
que nosso corpo ganha com isso é que em uma velocidade mais baixa
passamos a utilizar mais gorduras, preservando o estoque de
carboidratos. Inúmeros trabalhos já demonstraram os drásticos efeitos
que é oferecer uma fonte de carboidratos para atletas "exaustos" por
depleção de carbo. É como se o "peso" das pernas fosse retirado com as
mãos.
CALOR, SINAL DE ALERTA.
Uma sensação semelhante pode ser causada por dias de temperatura muita
elevada. Utilizando outros receptores e mecanismos, nosso sistema
nervoso faz uso de uma tática semelhante à usada no controle da glicose
quando precisa defender a temperatura. Durante o exercício, a
temperatura corporal aumenta em proporção direta à taxa de trabalho,
neste caso a velocidade de corrida.
Vamos
supor que um corredor, correndo a 15 km/h, num dia de clima ameno de
cerca de 20°C, aumente sua temperatura corporal a uma taxa de 0,5°C a
cada 10 minutos. Se ele começar o exercício com 36°C de temperatura,
normal para o corpo humano, ele atingirá 40°C em cerca de 1h20 de
corrida, marca limite tolerável para muitos corredores. Se ele estiver participando de uma prova de uma hora de duração, ou mesmo uma de 1h20, isto não lhe trará problema algum.
Agora, se o corredor em questão tentar impor este ritmo numa prova de cerca de duas horas, seu corpo
logo irá reconhecer que a temperatura limite será alcançada antes da
linha de chegada, o que o colocaria em sério risco de falência múltipla.
Por isso, assim que nosso corpo detecta que a taxa de ganho de calor
está mais alta do que ele pretende tolerar ao final do exercício, temos a
mesma situação do exemplo anterior: as pernas pesam, o exercício parece
demasiado pesado e o corredor diminui o ritmo. Com a velocidade mais
baixa, cai também a taxa de produção de calor e se atinge a linha de
chegada em uma temperatura considerada "segura" pelo organismo.
Este
exemplo possui diversos valores arbitrários, mas que não alteram sua
validade. Quarenta graus não são, por exemplo, um número definitivo, nem
a taxa proposta de 0,5°C a cada 10 minutos é um número real. Da mesma
forma, o ganho de temperatura não é completamente linear ao longo do
exercício. Nosso corpo irá ativar o mecanismo de suor, que dependendo de
sua eficiência pode desacelerar mais ou menos o processo de aquecimento
corporal.
ÁGUA NA CABEÇA. De
todo o jeito, um ritmo muito forte, combinado com clima desfavorável,
pode ser um dos fatores que limita a performance sem que o corredor
sinta o peito arder. Medidas como gelar a nuca, onde se situa o centro
de controle de temperatura do organismo, podem auxiliar a reverter
parcialmente o processo, e até hoje não foram encontrados efeitos
adversos de tal manobra. Já existem inclusive "coleiras" térmicas que
podem ser utilizadas em volta do pescoço, para manter a região
resfriada.
Finalmente, como se podia
esperar, a falta de perna pode ocorrer, pura e simplesmente, pela falta
de pernas. Quando realizamos uma atividade repetidamente, como as
passadas em uma corrida, vamos aos poucos acabando com o estoque de uma
série de compostos responsáveis pela contração muscular, desequilibrando
as concentrações de eletrólitos que geram os estímulos nervosos e
rompendo as estruturas cuja função é contrair as fibras musculares.
Ora,
não é surpresa que uma estrutura exausta, machucada e esgotada funcione
pior do que uma "fresca". Quando uma situação deste tipo ocorre, a
causa é normalmente uma falha no treinamento. A carga, ou ritmo de
corrida, é baixa o suficiente para que todos os sistemas funcionem
corretamente: a temperatura não se eleva demais, os carboidratos estão
bem, o sistema cardiovascular está trabalhando com facilidade.
Acontece,
porém, que o tempo de esforço é muito longo, e os músculos não estão
acostumados a se contrair por tanto tempo nessa intensidade. Parece
óbvio, mas não é. O corredor pode focar todo o seu treino em séries
longas e lentas, e de repente resolve que vai correr a cerca de 30
seg/km mais forte que seu ritmo de treinos. O contrário também se
aplica, onde o treinamento envolve diversas séries curtas e rápidas, sem
que haja preparação para o tempo prolongado da prova.
A
verdade, como se acaba descobrindo, é que ninguém corre numa prova o
que não consegue em treinos. Treinar para a velocidade é tão importante
quanto treinar para toda a distância de uma competição, e não apenas
para os primeiros quilômetros.
FALTOU PULMÃO.
Faltar pulmão, na verdade, é onde o corredor deseja estar. Se todos os
outros sistemas estiverem trabalhando corretamente, o corredor deve
estar trabalhando no limite de seu sistema ventilatório durante toda uma
prova. O que não pode acontecer, por motivos óbvios, é o corredor
ultrapassar este limite antes da chegada.
Para
cada distância, existe um ritmo em que o corredor sente que se ele for
um pouco além, irá perder o controle de sua ventilação. Isso ocorre
porque neste ponto é quando a pressão de oxigênio dentro dos músculos
desce o bastante para que o metabolismo anaeróbico, que independe de
oxigênio, aumente consideravelmente. Isto leva a maior produção de gás
carbônico, que precisamos tirar do nosso organismo o mais rapidamente
possível. A presença de gás carbônico no sangue estimula centros
respiratórios, que por sua vez disparam nossa ventilação e nossa
sensação de esforço - sempre ela. Quando a velocidade de corrida passa
do ponto em que o metabolismo anaeróbico é utilizado em maior
quantidade, teremos este "pico" de ventilação, que conseguimos superar
apenas por um tempo limitado, por exemplo, no chamado "sprint final" de
uma prova.
Empurrar o ponto onde esta
"troca", por assim dizer, de metabolismo acontece é um dos objetivos
principais do treinamento físico. Por isso se esta for a sensação de um
corredor no pós-prova, é sinal que ele realmente correu o que podia ter
corrido naquele dia, e que aquela performance pode ser utilizada para
julgar o seu real estado de condicionamento.
Fonte: http://revistacontrarelogio.com.br/materia/faltou-perna-ou-pulmao/
CORRIDADERUAFOZ.BLOGSPOT.COM
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